Retorno às Sagradas Escrituras e à sua concepção tradicional

Retorno às Sagradas Escrituras e à sua concepção tradicional

Témoignages, 1942-3
Cahier de la Pierre-qui-Vire

Para fazer afastar-se do espírito humano a corrente racionalista que mansamente o separou, durante a Renascença, do pensamento cristão tradicional, e o desviou de pouco em pouco em direção ao cientificismo moderno, passando pela Reforma, a Enciclopédia e a Revolução; para levá-lo de novo à concepção católica do universo, que, sendo a única verdadeira, é a única capaz de garantir seu equilíbrio, nada é mais importante do que lhe dar novamente o gosto das Sagradas Escrituras. Podemos afirmar sem medo que, na base da desordem de que o mundo contemporâneo sofre, é necessário localizar a ignorância e a ininteligência dos livros sagrados, escritos pelo próprio Deus a fim de instruir o homem, a fim de lhe explicar o sentido da vida e lhe designar todos os seus deveres aqui embaixo. Trata-se de uma ignorância por parte da maioria do povo cristão, que não lê mais as Escrituras, que nem mesmo sabe mais qual é a sua História sagrada; trata-se de uma ininteligência por parte daqueles que, encarregados de a ensinar aos outros, abandonaram o campo fértil da interpretação tradicional, a fim de mandar as almas pastarem no deserto da exegese racionalista.

Contra esse duplo mal reagir é indispensável, e é essa necessidade que aqui gostaríamos de expor sobriamente. Gostaríamos de exortar sobretudo os católicos, todos os católicos, a lerem as Escrituras; daí, aqueles que assim puderem, a buscarem compreendê-la melhor.

É necessário ler as Escrituras. Assim como é impossível manusear um líquido perfumado sem impregnar dele as próprias mãos ou vestes, é impossível que a alma entre em contato com esse livro divino sem reter alguma coisa da santidade de que estão carregadas todas as palavras, até o menor iota.

O Senhor, diz São João, me fez ver um rio de água viva, brilhante como o cristal, que saía do trono de Deus e do Cordeiro¹. Nesse rio de água viva podemos, à luz dos santos doutores, reconhecer as próprias Escrituras². O autor as apresenta pela imagem de um rio, para exprimir a sua abundância, a sua profundidade, a sua potência; de um rio de água viva, pois saciam a sede, transportam, fertilizam, engendram a vida. Assim diz-se brilhante, por causa da luz que projetam sobre aqueles que se aproximam delas com fé, e compara-se ao cristal em razão da sua infinita pureza.

Porém, ele ressalta que Deus lhe “mostrou” (ostendit) tudo isso, a fim de nos fazer entender que as qualidades transcendentes desse livro não aparecem de modo algum à primeira leitura. Deus, com efeito, teve de cobrir o brilho ofuscante da luz de Seu Verbo sob expressões, figuras e analogias apropriadas à condição do espírito humano e à fraqueza da nossa visão. Eis por que nós encontramos nos Livros Sagrados tantos traços que nos parecem insignificantes, vulgares, ridículos, até mesmo grosseiros. Por baixo dessa casca, todavia, se esconde a Sapiência Divina, o esplendor da luz eterna e o espelho sem máculas da majestade de Deus³. Nesse livro é o próprio Deus que fala a nós, é Ele que é o verdadeiro autor das Sagradas Escrituras, e os homens dos quais Ele se serviu não passam de instrumentos, de porta-penas entre suas mãos. De meu coração, grita o salmista, surgiu uma palavra que contém todo bem; dou meus louvores ao Rei, minha língua é como o junco do escriba, que escreve rapidamente⁴. Com isso ele quer nos dizer: “Não se espantem ao me ouvir publicar coisas admiráveis e cantar com tal perfeição a glória de Deus. Não é do meu próprio fundo que tiro minhas palavras, minha língua é apenas o junco de que se serve o Espírito Santo para escrever nos seus corações. E ele escreve bem rápido, pois a verdade divina não se desvela ao Profeta depois de um trabalho laborioso e de longas meditações; ela o ilumina repentinamente e lhe dita o que deve dizer.” O mesmo Davi, ao fim de sua vida, rendeu um testemunho semelhante ainda por suas obras: Foi o Espírito do Senhor quem falou por mim, dirá ele, e foi o Seu discurso que se fez ouvir através de minha boca⁵.

Essa origem divina confere naturalmente às Sagradas Escrituras uma autoridade incomparável. Suas afirmações dominam absolutamente todas as leis estabelecidas pelo saber humano. Nem a gramática, nem a filologia, nem a história, nem a física, nem a astronomia, nem a geologia, nem qualquer outra ciência pode mencioná-la em seu tribunal para julgá-la desde cima e ajustá-la conforme suas categorias. Ao contrário, todas devem inclinar-se perante ela, perante a onipotência d’Aquele que a escreveu, e ordenar-se como podem de acordo com a sua verdade irrefutável.

É isso o que o apóstolo denota aqui ao dizer que ela procede do Trono de Deus e do Cordeiro. Ela sai diretamente, sem intermediários, sem intérprete, sem deformação, d’Aquele que criou o céu, a terra e tudo o que eles contêm, e que sobre eles exerce um dominium soberano; que conhece todas as coisas não como os homens, por tê-las estudado abordando-as pelos efeitos e daí remontando até às suas causas, mas Ele as conhece desde dentro, no mais profundo, na sua quintessência. Ele fala delas, portanto, com uma maestria infalível, que ultrapassa infinitamente todas as conclusões a que os homens mais doutos podem chegar.

O autor sagrado acrescenta que ela procede do Trono do Cordeiro, pois nos advém inteira por meio do Verbo. Foi Ele quem a ditou a Moisés, aos profetas, aos apóstolos; foi Ele quem realizou todas as suas figuras. Ele é o seu centro, seu princípio e seu fim. Toda a Escritura só nos fala d’Ele; quando a esvaziamos d’Ele, não é mais do que um corpo sem alma.

Ela contém, então, uma ciência incomparável.

“Tão grande é a profundidade das letras sagradas”, escreve Santo Agostinho, “que nelas eu incessantemente descobriria novas coisas, ainda que, mesmo no seio da maior tranquilidade e com a disciplina mais intensa, nada além delas eu tivesse estudado desde a minha primeira infância até à velhice mais tardia, o que não quer dizer que seja muito difícil descobrir nelas as verdades necessárias para a salvação. Mas, depois de ter firmado nelas esta fé, sem a qual ninguém pode levar uma vida piedosa e correta, aos que avançam ainda resta compreender muitas coisas, e coisas envoltas em muitos mistérios. Uma sabedoria tão profunda se esconde não apenas nas palavras das Sagradas Escrituras, mas também naquilo que elas exprimem, pois que as mentes mais penetrantes, mais desejosas de aprender e que mais têm investido tempo nesse estudo provam a verdade desta palavra das mesmas Escrituras: Quando o homem crê ter acabado, ele terá apenas começado⁶.”

Cassiodoro, por sua vez, diz: “Vejam quanto é doce, quanto é admirável o sabor das Divinas Escrituras: incessantemente elas nos elevam os desejos até ao céu, saciam nossa alma sem a deixar e suscitam nela a fome gloriosa pelos bens eternos. Que suavidade não se encontra nas Escrituras! E que lucro, se as estudarem na mais pura luz da verdade! Quanto mais lhes ensinam a caridade para com Deus e o próximo, tanto mais os fazem compreender que se deve desprezar os bens deste mundo. Igualmente, elas acordam no coração de vocês a lembrança dessa pátria que devemos habitar eternamente. Ensinam-lhes paciência, dão-lhes esperança, cantam os benefícios da humildade e mostram as infelicidades acumuladas pelo orgulho; e igualmente elas nos incentivam a dar esmola em abundância. Elas contêm tantas palavras quanto tesouros⁷.”

Contudo, esse livro profundo é, ao menos em uma certa medida (retornaremos a essa afirmação em breve), acessível à toda inteligência humana. Não foi escrita “para um só tempo e uma só classe de homens, mas como uma carta pessoalmente endereçada a cada um de nós, sem que sempre possamos distinguir nitidamente a assinatura⁸.” As vias e os meios do Espírito Santo, com efeito, não são limitados como os nossos. Quando Ele ditava aos escrivães sagrados o que queria nos dizer, Ele tinha presentes uma por uma e distintamente todas as miríades de almas que deviam passar pela terra ao longo dos séculos; Ele os conhecia por dentro e por fora, nas suas maiores fraquezas, nas suas aspirações mais secretas, e falava a cada um diretamente, dizendo muito precisamente aquilo de que a alma teria necessidade para se salvar e tornar-se melhor. Cada homem, então, ao pegar a Bíblia, pode dizer que foi escrita para ele, como se só houvesse ele no mundo, e eis por que sempre haverá proveito em ele mesmo abordar o texto.

Que saibamos, ninguém insistiu mais nisso do que São João Crisóstomo. Ele sempre volta a essa questão em seus sermões, exorta sua audiência a se exercitar continuamente na leitura dos Livros Sagrados. Ele não admite as desculpas daqueles que pretendem se dispensar desse exercício dizendo: “Eu estou preso ao bar, desempenho um ofício, tenho uma mulher, tenho crianças a alimentar, sou um homem do mundo e as Sagradas Escrituras não são para mim, são para aqueles que renunciaram ao mundo… Que está dizendo, meu amigo? Ler as Escrituras não é para você, porque você está muito ocupado? Eu lhe digo que você tem mais necessidade do que os monges. Eles, com efeito, estão protegidos pelo gênero de sua vida de muitos golpes do inimigo. Você, por outro lado, está na massa, constantemente exposto a novas feridas. As causas de impaciência, de inveja, de inquietude, de desencorajamento e de vaidades o cercam sem cessar. Seu inimigo lança continuamente contra você novas flechas, e é por isso que você tem uma contínua necessidade de encontrar a sua força e a sua armadura nas Sagradas Escrituras⁹.”

Além disso, esse era um costume universalmente aceito na Igreja em seu tempo. Todo o mundo então frequentava assiduamente as Sagradas Escrituras. Não somente as liam, mas, diz-nos São Jerônimo, “as aprendiam de cor, com repetição, e acreditavam que ao aprendê-las se tornariam melhores.”

É verdade que, desde então, a Igreja aparentou mostrar-se cada vez mais reservada quanto a essa questão. Embora ela não tenha jamais proibido a leitura dos Livros Sagrados — proibição da qual tem sido acusada —, contudo envolveu essa leitura de certas preocupações e manifestou a vontade de não deixar a palavra de Deus em quaisquer mãos, sem controle.

Essa mudança de atitude coincide com a aparição do protestantismo. A partir daí é fácil estabelecer as razões disso. A Bíblia, dizíamos há pouco, contém um grande número de passagens claras e acessíveis a todas as inteligências. Deus assim quis, para que os homens, mesmo os mais simples, pudessem encontrar nela o seu alimento. Todo o mundo, por exemplo, pode compreender por si mesmo a história de José vendido por seus irmãos ou o Sermão da Montanha. Mas, ao lado disso, encontramos nas Escrituras um número muito mais considerável de passagens obscuras, desconcertantes, incompreensíveis, e tais que nenhuma mente humana, deixada às suas forças tão somente, pode penetrar-lhe o sentido: Quando derem este livro àquele que se instruiu nas letras humanas, diz o profeta Isaías, eles lhe dirão: Explique-o para nós; e ele lhes responderá: não posso, está selado¹⁰. As Sagradas Escrituras são, com efeito, um livro selado, e a chave que permite descobrir-lhe o sentido não foi dada por Deus à ciência humana; ela foi, como a outra, como aquela que permite ligar e desligar, confiada ao Príncipe dos Apóstolos e à Cátedra de Pedro. Se queremos entender o profundo eco da Palavra Santa, é indispensável que comecemos por inclinar o orgulho da nossa razão e que nos submetamos de olhos fechados ao magistério da Igreja. São Pedro nos ensina que se queremos ver brilhar em nossos corações a aurora da divina luz, é-nos necessário sobretudo compreender que não se podem interpretar livremente todas as profecias das Sagradas Escrituras¹¹. Isso significa, como explica São Tomás, que não podemos “explicar ou ordenar as Escrituras segundo nosso próprio juízo, mas devemos submeter a nossa inteligência às sentenças dos profetas e às exposições dos outros santos”¹², quer dizer, interpretar as Escrituras segundo as próprias Escrituras e segundo os comentários que acerca delas fizeram os Santos Doutores.

A Bíblia não pode ser separada da Tradição, eis o princípio absoluto que a doutrina católica sempre professou. “Eu não creria no Evangelho”, já dizia Santo Agostinho, “se a isso não me levasse a Igreja.”

Ora, nos primeiros séculos do cristianismo as Escrituras eram o constante tema de pregação. Basta abrir os sermões e os escritos dos Padres para nos convencermos disto: o ensinamento que dão aos seus rebanhos sempre gravita em torno do texto sagrado. Este último era comentado nas igrejas todos os dias. Suas passagens obscuras e contradições aparentes eram explicadas, seu sentido espiritual era desvelado. Os fiéis eram assim premunidos contra o erro, e a leitura privada desses livros divinos, esclarecida pelo ensinamento público, só podia levar às almas os frutos mais salutares. Por isso a Igreja a encorajava tanto quanto podia.

Porém, desde o irromper do protestantismo, as coisas mudaram de face. Os reformadores pretenderam libertar a razão humana da tutela dos Padres e das linhas da Tradição. Eles estabeleceram o princípio do livre exame, e desde então todos se criam no direito de interpretar as Escrituras ao seu modo. Disso naturalmente resultou uma incrível desordem nos espíritos, a cristandade se tornou uma espécie de torre de Babel na qual cada um falava a língua do seu próprio juízo. Para impedir a fé de se afundar nessa anarquia, a Igreja se viu obrigada a proteger a palavra divina contra as interpretações errôneas e as traduções imprecisas. Em particular, ela proibiu publicar novas edições em língua corrente, nas quais o texto não seria esclarecido pelas notas tiradas dos escritos dos Padres ou dos teólogos. Essa prescrição, ademais, somente sancionava um costume muito corrente na Idade Média, o de se servir de Bíblias acompanhadas de uma Glosa.

Ao mesmo tempo, a Igreja mostra aos católicos a via na qual devem engajar-se. Ao invés de manter-se, como os protestantes, somente no texto das Escrituras, eles preferirão as edições carregadas de notas, ou até mesmo adicionarão a essa leitura a de alguns comentários. Mas, nesse domínio, é indispensável fazerem-se bastantes reservas e só agir com circunspecção.

***

Os comentadores modernos, com efeito, têm, em sua maioria, se desviado do caminho marcado pelos Padres da Igreja. Eles se fecharam e se protegeram dentro da exegese racional, como numa fortaleza — certamente muito sólida, mas sem nenhuma janela aberta para o horizonte das colinas eternas. Todavia, a princípio é necessário estabelecer bem que a palavra “exegese”, reduzida a si mesma, é absolutamente impotente para nos fazer inteligir as Escrituras.

Em que consiste propriamente esse inteligir? Em discernir sob a letra, isto é, sob o sentido histórico, o sentido espiritual que se esconde. Tal é o comum e constante ensinamento dos Doutores.

Vejamos, por exemplo, como se exprime Santo Agostinho: “Nas leituras que nos fazem hoje em dia, irmãos amados, frequentemente recebemos a exortação de não abandonarmos o espírito que vivifica para seguirmos a letra que mata, como diz o apóstolo. Se aplicarmos somente a nossa inteligência ao que ressoa na letra, então tiraremos das leituras divinas apenas uma pequena, ou mesmo nenhuma, edificação. Todas as coisas que se nos contam eram tipos e imagens das que haviam de vir. Para os judeus elas eram figura, e nós, com a graça de Deus, vemos o seu cumprimento¹³.”

São Jerônimo fala na mesma linguagem: “Nas Escrituras”, diz ele, “não é segredo para ninguém que um é o som que torna simples a letra, outra é a doutrina que nela expressou o Espírito de Deus. Todos os eventos antigos eram símbolos de alguma coisa, e para nossa instrução é que foram relatados¹⁴.” Poderíamos multiplicar ao infinito as citações desse tipo.

Assim, o papel de intérprete dos Livros Sagrados é essencialmente o de ajudar o leitor a retirar o véu que constitui o texto literal e a penetrar até às realidades sobrenaturais escondidas sob sua trama. Ora, esse papel, deve-se confessar, a exegese moderna descumpre completamente. Ao contrário, ela manifesta pelo sentido espiritual um desdém custosamente temperado de compaixão. Não compreendendo nem um pouco do que se trata, ela à vontade o confunde com o sentido a que os teólogos chamam acomodação — o que é um erro imperdoável — e sob esse pretexto o relega inteiramente ao domínio das “considerações piedosas”, as quais por sua vez não têm nada a ver com a verdadeira ciência bíblica. Ela se limita estritamente à dissecção do sentido literal, como se este formasse por si mesmo um todo, como se pudesse ser explicado fazendo-se abstração do sentido espiritual! E ela pretende desnudar-lhe todas as dificuldades pelas suas próprias luzes, à força de erudição, mobilizando para esse fim os recursos da história, da geografia, da filosofia, da arqueologia, da paleografia, da física, da geologia etc.

Que nosso pensamento não seja mal interpretado. Não gostaríamos de aplicar aos exegetas o princípio da legalidade. Não lhes reprovamos o ter feito apelo a todas as ciências supracitadas e outras, a fim de justificar contra os protestantes, contra críticas liberais, a versão adotada pela Igreja, e a fim de estabelecer de modo irrefutável tanto a sua autenticidade como o seu valor histórico. Assim fazendo, eles obedeciam às direções dadas pelos Soberanos Pontífices, eles rendiam à causa católica um serviço que jamais poderemos superestimar.

Mas, por outro lado, em face do problema que se põe, o de uma renovação da vida cristã, parece-nos impossível não destacar sua inoportuna orientação, não deplorar a banalidade, a platitude, a esterilidade do gênero ao qual conduziram o estudo das Escrituras, pelo pouco caso que praticamente fazem da autoridade dos Padres, ao mesmo tempo que pela sua pretensão de reduzir toda a explicação da Bíblia à explicação do seu sentido literal. A tradição católica interpreta a palavra de Deus por um tetracorde composto pelo sentido alegórico, pelo sentido moral, pelo sentido anagógico e pelo sentido literal¹⁵. Eles cortaram fora os três primeiros para guardar de todos apenas um, o último, o mais plano… De que vale então um tal instrumento, e como nos faria entender as harmonias celestes das quais esses Livros estão cheios? O dano causado por isso à vida das almas, para as quais a Bíblia é o alimento essencial, e é tão grande que nunca será exagero falar, também neste domínio, de uma “traição dos clérigos”.

Nunca desde as origens da Igreja foi mais justo recitar esta queixa do profeta: Os pequeninos pediram pão, e não havia quem lho repartisse¹⁶. As almas simples têm fome da palavra de Deus, elas querem nutrir-se da palavra de Deus. Mas ninguém se dá ao trabalho de explicá-la. Notemos que o autor não diz: “e não havia quem lho desse”, pois certamente as edições e os comentários das Sagradas Escrituras não nos faltam; mas “não havia quem lho repartisse”, quer dizer, para o desvelar, para lhes fazer compreender o mistério escondido sob a casca.

***

A fim de tornar estas considerações mais claras, gostaríamos de comentar brevemente aqui um episódio da História Santa ao modo dos Padres, para fazer ressaltar aos nossos leitores a diferença que reina entre o seu método e o método da crítica moderna. Escolheremos de propósito um fato de importância secundária e que nos seja apresentado em circunstâncias à primeira vista inverossímeis e extravagantes.

Tomemos, por exemplo, do livro de Juízes, uma característica bem comum da vida de Sansão. As Sagradas Escrituras nos contam que esse homem prodigioso, depois de ter matado mil filisteus com uma mandíbula de burro, a jogou na terra. Daí, como se experimentasse uma sede ardente, ergueu ao Senhor uma fervente súplica. Deus, então, abriu um dente molar na mandíbula do burro, e fez sair dela a água que permitiu a Sansão recuperar suas forças.

Eis, evidentemente, um relato todo extraordinário. Na memória registrada jamais se viu, mesmo na Palestina, uma fonte de água sair da mandíbula de um burro, assim como no tempo de Nosso Senhor jamais se ouviu dizer que alguém houvesse aberto os olhos a um cego de nascença¹⁷. A crítica se emudece, então, em vista de um relato tão estranho. Manifestamente, trata-se de algum erro da Vulgata, causado por culpa de um tradutor que, mais uma vez, entendeu mal o texto hebraico e o fez dizer um absurdo.

Uma exegese verdadeiramente católica, verdadeiramente de acordo com as direções dadas pelos Soberanos Pontífices, consultaria nesse caso os Padres da Igreja, para saber como eles citaram e compreenderam essa passagem. Essa exegese constataria sem problemas que todos os que lhe fizeram qualquer alusão, tanto gregos como latinos, a entenderam no mesmo sentido que a Vulgata. Essa exegese já se veria obrigada a acatar a opinião deles e, não obstante a estranheza do fato, se inclinaria diante da palavra dos Livros Sagrados, como em Lourdes a ciência médica se inclina diante dos fatos que põem em questão as suas leis mais bem estabelecidas. Mas o cientificismo ignora essa amplitude de compreensão que é o apanágio da verdadeira ciência, e a ele se devem dar, custe o que custar, explicações “racionais”, isto é, que possam enquadrar-se em suas concepções ordinárias e ajustar-se ao leito de Procusto sobre o qual opera a análise e a dissecação de todo elemento novo de conhecimento. Deixando de lado os Padres e suas alegorias fantasiosas, a nossa crítica vai buscar sua luz no próprio texto hebraico. É verdade que nesse caso a maioria dos antigos rabinos o entenderam do mesmo modo que os Padres e a Vulgata… Bom, isso a gente deixa de lado. Há no entanto algumas exceções, e é ao partido delas que vamos nos aliar. Na Paráfrase Caldeia, por exemplo, não se duvida mais de um molar na mandíbula de um burro. Ela diz: Deus partiu a rocha que estava em Leí, e dela saiu água. Enfim algo que possamos aceitar com bom senso. Sem dúvida, ainda se dá um milagre, mas, afinal, é um milagre aceitável, um milagre como outros que já vimos, um milagre que salvaguarda a necessidade de uma intervenção divina, sem perturbação das leis da natureza. E assim vemos sucessivamente, no século XX, todas as traduções francesas da Bíblia substituírem essa interpretação pela que era corrente e corresponde ao texto latino.

“Pois ainda há milagre”, dizem ingenuamente seus autores, “a coisa nem é tão importante”. Cobertos por esse princípio que lhes tranquiliza a consciência, reduzirão a travessia do Mar Vermelho em terra firme a um simples vau, e farão com que o maná não caia mais do céu, mas das árvores do deserto. No entanto, esses desvanecimentos de inocente aparência tiram dos milagres relatados nas Escrituras toda a substância. Eles são destinados, precisamente por seu caráter insólito, a nos fazer compreender a absoluta transcendência de Deus e a total contingência do mundo em face d’Ele.

Porém, acima de tudo, eles as esvaziam de todo sentido místico, o único capaz de dar significado e justificar sua aparição no texto sagrado.

Deste exemplo que tomamos qual é o sentido? O que significa Sansão, com sua mandíbula de burro?

Escutemos docilmente o ensinamento dos antigos. Sansão, por causa de sua força prodigiosa, é a figura do Cristo, que ultrapassa em potência a todos os outros homens. Ora, como o Cristo derrotou seus inimigos aqui na terra? Diz-nos o apóstolo: “As coisas loucas, segundo o mundo, escolheu-as Deus para confundir os sábios, e as coisas fracas, segundo o mundo, escolheu-as Deus para confundir as fortes¹⁸”. Ele chamou alguns pescadores da Galileia e os enviou para conquistar o mundo. A pregação desses homens pobres, sem instrução, eis a mandíbula do burro com a qual derrotou os ricos, os sábios e as potências do século.

Por que Sansão, em seguida, lança a mandíbula à terra? Para figurar de antemão o que Nosso Senhor faz quando abandona os mesmos apóstolos ao furor de seus inimigos. Ele parece ter-se desinteressado deles. Ao invés de fazê-los sentar-se em tronos e garantir-lhes uma velhice alegre, como o exigiria a lógica humana, Ele permitiu que fossem entregues aos carrascos e morressem nos suplícios mais variados. Ele, então, como que os deixou cair de sua mão, retirando-lhes a potência que lhes havia dado.

Ao mesmo tempo, contudo, diante da violência das perseguições, a Igreja, corpo místico do Cristo, e a esse título também figurada por Sansão; a Igreja, atormentada pela sede ardente da salvação das almas, bradava aos céus, pedindo por socorro. Deus então abriu um dente molar na mandíbula do burro, e dela fez sair uma fonte de água. O que isso quer dizer? Deus fez sair dos ossos dos apóstolos e dos mártires uma abundante fonte de graças. Os seus corpos mortos tornavam-se fonte de vida. Em seus túmulos, cegos recuperavam a visão, possuídos eram libertos e doentes de todo tipo encontravam sua cura, como nos ensina a liturgia no hino Iste Confessor:

Ad sacrum ejus tumulum frequenter
Membra languentum modo sanitati
Quolibet morbo fuerint gravata
Restituuntur.

Assim, na mandíbula do burro morto, ou seja, nos corpos secos dos pregadores do Evangelho, toda a Igreja militante encontrou um alívio que a ajudou a prosseguir em sua missão na terra.

“O Cristo Nosso Senhor”, escreve São João Damasceno, “fez dos restos dos santos como que fontes salutares, que deixam correr sobre nós inúmeros benefícios, de onde por vezes escapa um unguento muito suave. Não há nada de inacreditável nisso. Pois, se no deserto a água saía de uma rocha seca e dura [pela vara de Moisés], e se Deus permitiu que também saísse água da mandíbula de um burro para saciar a sede de Sansão, qual é a surpresa em vermos correr das relíquias dos mártires um bálsamo requintado? Eles não tinham problemas em crer, pois sabiam qual era a potência de Deus e que grande honra Ele confere aos seus santos¹⁹.”

***

Agora tentemos extrair considerações que precedem algumas conclusões práticas.

Em primeiro lugar, como dizíamos no começo, é necessário ler as Escrituras. É necessário ler o próprio texto, em virtude da graça misteriosa que Deus nele pôs e que o permite atingir até às mais secretas fibras da alma. É necessário ler as Escrituras, ainda que não a compreendamos. O eunuco da rainha Candace também não compreendia o que lia, mas, porque era assíduo em sua leitura, mesmo durante suas viagens, ele mereceu encontrar um santo e receber a luz. Quem quer que aborde os livros com o respeito que a palavra de Deus merece, com a fé sem reservas que lhe é devida, não pode não conseguir dela grandes vantagens. O Espírito Santo esclarece e auxilia aqueles que escutam a sua voz, Ele lhes revela muitas coisas que não se encontram nos livros.

Se pudermos, façamos essa leitura em latim no texto estabelecido por São Jerônimo, segundo a Igreja o único garantidamente infalível. “A despeito de todos os filólogos”, diz de modo excelente o Sr. Paul Claudel, “o cristão há de preferir sempre a versão da Vulgata, que [por suas violências gramaticais] reintroduz, às custas da sintaxe, o formidável autor do primeiro versículo do Gênesis e do primeiro versículo de São João²⁰.”

Se não pudermos abordar o texto em latim, leiamos uma tradução, mas então submetendo-nos ao julgamento de um diretor. A leitura de todas as partes das Escrituras em língua vulgar, com efeito, não convém a todos indiferentemente, e, para determinar a parte que cada um poderá assimilar com fruto, é necessário colocar-se sob a sabedoria daqueles que têm graça de estado para dirigir os outros.

À leitura do texto sagrado é ótimo, quando possível, adicionar a leitura dos Padres ou dos Doutores da Igreja. Apenas eles sabem realmente saborear as Escrituras e nos explicar o sentido. Entre aquelas de suas obras para as quais existem traduções em nossa língua, recomendamos especialmente os comentários de Santo Agostinho, de São Jerônimo, de São João Crisóstomo e a de São Roberto Belarmino sobre os Salmos. Além disso, por razões várias, essa leitura não será praticável a todos, e muitos deverão manter-se nos comentários modernos. Ora, se for necessário ler as próprias Escrituras Sagradas e os escritos dos Padres com a simplicidade da pomba, será necessário, por outro lado, abordar essas obras com a prudência da serpente; bem raros são os que não se submetem mais ou menos à influência da exegese contemporânea, da qual temos exposto tendências lastimáveis. Lembremo-nos ao lê-los que tudo o que nós encontramos neles não é palavra do Evangelho, e, assim como a serpente, no dizer de São João Crisóstomo, sempre vela para proteger sua cabeça, defendamos com zelo a nossa fé contra todas as investidas do vírus racionalista. Entretanto, ao menos no Novo Testamento, há exposições de uma doutrina muito certa e que sabem aliar o progresso das ciências modernas com o respeito pela tradição²¹. Pode-se consultá-las com grande lucro.

Quanto ao Antigo Testamento, impõe-se uma reserva muito maior. Não podemos citar muitas obras suscetíveis de dar a um leitor dos nossos dias o entendimento, tal como o definimos mais acima²². Expressamos nosso desejo, que o abade Tardif de Moidrey formulou no seu prefácio ao livro de Rute²³: “Que tesouro não poríamos nas mãos dos fieis se desenvolvêssemos em uma série de […] monografias a sequência verdadeiramente admirável das figuras do Antigo e os símbolos do Novo Testamento, fazendo ver e tocar como o Nosso Senhor Jesus Cristo, sua Santíssima Mãe, Sua Igreja, Sua graça e os destinos da alma cristã são anunciados no Antigo Testamento, simbolizados no Novo, manifestados num e noutro pela existência e pelas ações de personagens incomparáveis, tais como os patriarcas, as mulheres bíblicas […], os profetas, o esposo de Maria, o precursor de Jesus, os santos apóstolos, as santas mulheres e os discípulos evangélicos.”

Terminando, portanto, desejamos que os comentadores de amanhã compreendam enfim as necessidades verdadeiras e os secretos desejos da alma cristã do século XX; que levem a ela, em obras adaptadas ao seu tempo, não mais apenas a letra que mata, mas com ela o espírito que vivifica; e que substituam o aparelho crítico de uma erudição que não interessa senão a uns raros especialistas por um florilégio colhido na Tradição católica, a única formadora de santos.


Dom Jean de Monléon,
da Abadia Sainte-Marie de la Source, Paris.

Tradução: Igor Montez

Notas de rodapé

¹ 1 Ap. 22, 1. Ostendit mihi Dominus fluvium aquæ vivæ, splendidum tamquam crystallum, procedentem de sede Dei et Agni.
² São Boaventura, Principium Sacrae Scripturae, Ed. Vivès, t. IX, col. I.
³ Sb. 7, 26. Candor est lucis æternæ et speculum sine macula Dei majestatis.
⁴ Sl. 44, 2.
⁵ 2Sm 23, 2.
⁶ Ecl. 16, 6. – Santo Agostinho, carta 147 a Volusiano, 3. – Pat. Lat. t. XXXIII, col. 516.
De Institutione divinarum litterarum, cap. XVI; Pat. Lat. t. LXX, col. 1131.
⁸ Paul Claudel, Introdução ao livro de Rute, p. 33.
De Lazaro, concio III, Pat. Gr. t. XLVIII, col. 992.
¹⁰ Ibid. XXIV, II.
¹¹ 2Pe. 1, 20. Hoc primum intelligentes quod omnis prophetia Scripturæ propria interpretatione non fit.
¹² In Epist. II B. Petr. Apost. Ed. Vivès t. XXXI, col. 4056.
¹³ Sermo XL de Vet. Test. I.
¹⁴ Ep. LXXVIII ad Fabiolam.
¹⁵ Quanto aos quatro sentidos da Escritura, nós nos damos a liberdade de encaminhar nossos leitores a um artigo da Via beneditina, edição de novembro de 1936.
¹⁶ Thren, IV, 4.
¹⁷ Jo. IX, 32.
¹⁸ I Cor. I, 27.
¹⁹ Da fé ortodoxa, L. IV, ch. XV, Pat. Gr. t. XLIV, col. 1166.
²⁰ Introdução ao livro de Rute, p. 27.
²¹ Ressaltamos como especialmente recomendáveis a esse respeito A vida e o ensinamento de Jesus Cristo, Nosso Senhor, por R. P. Lebreton, 2 vol., em Beauchesne; As epístolas de São Paulo recolocadas no meio histórico dos Atos dos Apóstolos, por Dom Delatte, 2 vol. em mame; a coleção Verbum Salutis, em Beauchesne etc.
²² Contudo, dentre os livros recentes, o Saltério litúrgico do falecido Dom de Puniet contém um louvável esforço por retornar à sã explicação dos Salmos.
²³ Página 125.