O original hebraico e a Vulgata
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Dom Jean de Monléon
- 18 Jun, 2025

Excerto de Jonas, pp. 124-127
Asseguro-lhes desde já: Sim, eu li a versão original. Com efeito, tenho o costume de me servir, para esse tipo de estudos, da Poliglota de Walton, sábia obra que contém, como sabemos, dispostos lado a lado não apenas o texto hebraico, mas também o da Septuaginta, a Paráfrase Caldeia, a versão siríaca e a versão árabe. Tenho sob os olhos, como suplemento, a tradução da Bíblia pelos membros do rabinato francês, editada em Paris a 1960 (Biblioteca Durlacher).
Dito isso, ousarei agora devolver a pergunta indagando ao Reverendo Padre se ele leu o original hebraico e, se sim, se saberia dizer quais diferenças há entre este e o texto latino. Pois eu juro que de minha parte só encontro as insignificantes. Os dois relatos seguem-se de capa a capa praticamente idênticos, dando-se o mesmo com o grego, com o caldeu, com o siríaco e com o árabe, sem nenhuma exceção.
Suponhamos no entanto que haja algumas variantes notáveis entre o hebraico e o latim. A qual deveríamos então dar a preferência? Qual dessas duas versões é aquela que tem “valor jurídico”, segundo a expressão empregada por Pio XII na Divino Afflante¹, isto é, aquela que assume caráter de autoridade em caso de conflito e “com que podemos produzir com toda segurança e sem medo de errar, nas discussões, o ensinamento e a pregação”?
Sem dúvida é de bom tom, hoje em dia, conferir à Vulgata o maior desprezo, e em toda ocasião invocar contra ela a verdade do texto hebraico, a veritatem hebraicam.
Felizmente, ela tem lombos fortes, protegida como está pelo decreto do Concílio de Trento²; pela bula de Clemente VII, de 9 de novembro de 1592, que proibiu alterá-la, adicionar-lhe ou retirar-lhe a menor parte; por múltiplos documentos posteriores, todos muito formais para não hesitarmos sequer por um instante acerca de seu absoluto direito de prioridade.
Submeter a Vulgata à verdade hebraica é um desses grandes enganos de que a alta crítica é familiar, pois é justamente essa “verdade hebraica” que São Jerônimo procurou restabelecer nela, acima de todas as traduções da Bíblia mais ou menos alteradas que circulavam em seu tempo. A Igreja, é verdade, sempre admitiu que esse trabalho não estava isento de qualquer reprovação, e desejou que fosse melhorado, utilizando-se as outras versões das Escrituras e as lições dos Padres. Desse modo, no entanto, temos o direito de garantir que não apenas ele não contém erros tocantes à fé ou aos humores, mas, ainda, que é substancialmente a reprodução mais fiel do texto original e inspirado.
Gênio literário fora de série, São Jerônimo empregou todos os recursos de sua inteligência e de sua vontade para restituir a palavra de Deus em seu teor autêntico. Embora já tivesse um sólido conhecimento do hebraico quando recebeu de São Dâmaso a missão de rever toda a Bíblia, ele não se entregou ao seu próprio juízo, mas se prestou a ter explicado, palavra por palavra, o exato sentido dos textos sagrados segundo os rabinos mais reputados, e que, ademais, nos relata ele, cobravam muito caro por suas lições. Ele tinha de fornecer aos apologistas de seu tempo uma obra segura, a fim de que não os parassem a todo instante nas discussões dizendo: “Essa passagem não está no hebraico”, como os judeus constantemente faziam.
Ele tinha à sua disposição documentos do mais alto valor, que desde então se encontram desaparecidos. Em particular, o pergaminho da Sinagoga de Belém, que ele copiou a punho próprio, e as célebres Héxaplas, nas quais Orígenes havia reproduzido, em seis colunas paralelas, o texto hebraico e as suas cinco principais traduções gregas existentes na época: obra gigantesca de crítica e erudição, cuja perda é considerada irreparável até nos dias de hoje pelos verdadeiros sábios (pois as Héxaplas foram dizimadas perto do ano 600, no incêndio da Biblioteca de Cesareia).
Aqueles que invocam a “verdade hebraica” raciocinam como se possuíssemos, ainda hoje, os manuscritos originais de Moisés e dos profetas. Mas não se pode ignorar que a única versão das Escrituras conservada pelos judeus é aquela dita dos massoretas³, que não remonta para trás do século VI. Ela é, consequentemente, posterior à Septuaginta e à Vulgata. Portanto, não se impõe nem por sua antiguidade, nem pela qualidade de sua redação, pois os rabinos que a executaram estavam bem longe de contar com métodos críticos comparáveis aos de São Jerônimo, que se revela, desde já, um mestre no assunto. Eles buscavam apenas estabelecer uma lição uniforme, a fim de fixar por escrito os famosos pontos-vogais⁴, que se haviam transmitido até àquela época unicamente por tradição oral. Mas, principalmente — e aí está o que eleva esse trabalho, o valor absoluto que se gostaria de lhe conferir —, a cada vez que o puderam fazer sem violência ao texto, eles cuidavam de apagar tudo aquilo que arriscasse indicar a glorificação de Jesus Cristo.
São Justino, em seu diálogo com Trifão, dá muitos exemplos disso. Assim, Jeremias, após ter apresentado o Messias sob a figura do cordeiro levado ao abatedouro, mostra os judeus determinados a destruí-lo dizendo: Ponhamos lenha no seu pão. É evidente que se trata de uma alusão — e assim também entendiam os Padres da Igreja — ao Pão de vida descido do céu, o qual será como que atravessado pela madeira da cruz na qual o pregaremos. Essas palavras encontram-se tanto na Septuaginta quanto na Vulgata, mas os massoretas as substituíram por estas: Destruamos a árvore com o seu fruto, o que exclui o simbolismo profético. Igualmente, eles truncaram o versículo do Salmo 95, que diz: Dizei às nações: o Senhor reinou pela madeira⁵. Essa expressão visa manifestamente ao Cristo, que estabelece seu reino sobre todo o universo desde o alto de sua cruz. Mas o sentido foi esvaziado quando suprimiram as palavras “pela madeira”.
Do mesmo modo, São Jerônimo nos mostra que, no segundo capítulo de Isaías, discretamente eliminaram o epíteto “Altíssimo” (excelsus, bama), que o profeta aplica ao Messias: “Compreendendo”, diz ele, “que essa pregação se referia a Jesus Cristo, interpretaram uma palavra equívoca no seu sentido menos favorável, a fim de parecer que não se dava nenhum valor a Cristo, como que longe de o louvar […] Eles aproveitaram-se da ambiguidade da palavra para lhe extraviar o sentido, pelo bem de sua impiedade, nada querendo dizer de glorioso acerca do Cristo, em quem não acreditavam” (In Isaiam, Pat. Lat. t. XXIV, col. 56).
Tal como se encontra, no entanto, essa versão constitui um documento sem preço, cujo estudo atento os Soberanos Pontífices frequentemente recomendaram, bem antes da encíclica Divino Afflante; mas, destaquemos, sempre no desígnio de justificar e de confirmar a doutrina católica, de melhor transmitir e explicar o sentido exato das Letras Sagradas, e não no de contradizer ou invalidar a Vulgata, a qual permanece sendo, ainda em nossos dias, a expressão mais adequada da Palavra de Deus.
Por outro lado, devemos sublinhar que São Jerônimo é um mestre da língua latina. Considerada apenas na perspectiva literária, a sua tradução é uma obra de arte. Claudel a punha acima dos poemas de Homero. O Padre Lagrange a tinha na conta de uma das mais admiráveis performances do espírito humano (Revue Biblique, 1911, p. 607). Páginas como as do casamento de Rebeca, das altercações de Moisés com o Faraó, da cena do Sinai, da história de José e da de Davi, da oração de Ester — imortalizada pela Raiz —, do salmo In exitu, do episódio dos três hebreus na fornalha, das queixas de Isaías e de Ezequiel acerca da queda de Lúcifer (da qual Bossuet sacou o seu célebre Como caíste do céu, ó astro brilhante, filho da aurora?)… e quantas outras disparam o seu autor à classe dos maiores nomes da literatura universal, chamados Virgílio, Dante, Shakespeare, Goethe, Corneille, Bossuet!
Além disso, graças à sua elevada inteligência, à sua sede de verdade integral e à sua prodigiosa capacidade de trabalho, São Jerônimo logrou assimilar-se perfeitamente ao gênio da língua hebraica, “essa língua, cheia de poder, que sempre diz sobretudo aquilo que não diz, que atinge e ultrapassa os limites da expressão, que incessantemente aspira ao inexprimível” (A. Chouraqui, Os Salmos, Prefácio, Paris, 1956). Por causa dessa riqueza e dessa profundidade, “a significação das palavras hebraicas”, diz São Roberto Belarmino, “não poderia ser reduzida ao que enunciam os dicionários, e deve-se ter mais confiança em São Jerônimo do que em qualquer dicionário” (Comentário sobre o Salmo 125, 4).
Seguindo de muito perto o manuscrito de Belém, que lhe servia de base, o santo doutor aplicou-se mais a verter exatamente o pensamento do escrivão sagrado do que a realizar uma tradução literal e servil. Posta ao lado da sua, a obra dos hebraizantes modernos mais se assemelha a tarefas escolares. Nesta encontramos uma honesta identificação entre palavras, mas trabalhosa, sem estilo e sem nobreza, e em vão buscaríamos nela o sopro de gênio que anima tanto a Vulgata quanto — dizem os competentes — o texto dos hebreus.
Acima de tudo, o que confere à versão de São Jerônimo um valor inimitável e insubstituível é que seu autor era um mestre da vida espiritual, iniciado nos mais altos estados de contemplação. Em função disso e graças ao carisma que evidentemente havia recebido de Deus para executar essa obra capital, ele logrou transpor ao latim toda a substância teológica e mística que o Livro inspirado continha. É realmente o Espírito Santo quem nos fala através de seu texto, e este se encontra na posição de adequada expressão do Verbo de Deus, a base sobre a qual imutavelmente repousam a fé, a doutrina e a piedade cristãs, o instrumento providencial que permitiu à Revelação expandir-se e atravessar o mundo inteiro.
Eis a razão de eu não ver muito bem em quê a leitura do original hebraico teria caráter de modificadora do valor histórico — tal como emerge da Vulgata e de toda a Tradição — do livro de Jonas.
Tradução: Igor Montez
Notas de rodapé
¹ (N. T.) Encíclica papal destinada à solicitação de novas traduções da Bíblia para idiomas vernáculos, usando também os idiomas originais como fonte, além de tratar da “crítica inferior” e da “crítica superior”.
² “A Vulgata deve ser tida como autêntica e ninguém deve ter a audácia ou a presunção de rejeitá-la sob nenhum pretexto […]” Quarta Sessão, Denzinger n. 785.
³ (N. T.) Também conhecidos pelo nome de “massoréticos”, os massoretas eram escribas judeus empregados à preservação e ao cuidado das escrituras que hoje compõem o Antigo Testamento.
⁴ (N. T.) Também conhecidos por “sinais massoréticos”, são sinais que indicam as vogais e outros aspectos de pronúncia a serem empregados na leitura das palavras. Essa prática ajuda a precisar o texto lido exercendo função pedagógica, uma vez que o alfabeto hebraico não conta com vogais.
⁵ (N. T.) Antífona: Proclamez chez les païens : le Seigneur a régné par le bois.