Autoridade eclesiástica dos Evangelhos

Autoridade eclesiástica dos Evangelhos

El Evangelio Explicado, Vol. 1, III

Objeto deste texto

Os Evangelhos, como toda a Escritura, são divinamente inspirados: isso lhes confere a autoridade divina que corresponde a livros escritos pelo próprio Deus. Porém, o fato da inspiração é oculto: se realiza, de uma maneira invisível e misteriosa, no impenetrável segredo das faculdades anímicas do escritor sagrado. Este pode, ainda, ignorar o fenômeno sobrenatural que dentro de si mesmo opera. Contudo, mesmo na hipótese de que o autor de um livro inspirado tem consciência do fato da inspiração, não somos obrigados, somente por seu testemunho, a crer que Deus o tinha favorecido com esse carisma. O contrário seria abrir a porta para que entrem no sagrado campo da verdade divina todos os devaneios do iluminismo pessoal.

É, portanto, necessário um critério para distinguir os livros divinos dos que não o são. Se não o tivéssemos, Deus teria exercido inutilmente conosco a grande misericórdia de dar-nos por escrito sua palavra: não saberíamos onde encontrá-la, ou correria o risco de ser suplantada pela palavra de um fanático ou impostor.

Diremos sumariamente, neste texto, por que meio conhecemos os livros divinamente inspirados: ou, o que vem a ser o mesmo, como livros “ontologicamente” divinos, embora nem sempre tragam em si mesmos a marca de sua divindade, alcançam um estado público, oficial, “jurídico”, em relação ao seu caráter divino.

Tradição e Escritura

Um conceito destes dois grandes e fundamentais elementos da nossa religião e da nossa fé nos permitirá compreender como se pôde impor-nos a aceitação do fato da inspiração divina dos Livros sagrados que são hoje compreendidos na denominação geral da Bíblia ou divina Escritura.

Tradição, em seu sentido geral e objetivo, é o conjunto de todas as verdades da divina revelação: Deus, por meio dos Profetas e Apóstolos, e especialmente por seu Filho, Jesus Cristo, manifestou aos homens um conjunto de verdades que formam a totalidade do corpo e da doutrina, de ordem especulativa e prática, que é o objeto da fé para quem quer salvar-se, isto é, contemplar-Lhe um dia face a face. Assim compreendida, a tradição abarca também as Escrituras divinas. Deus confiou à sua Igreja, em depósito, “toda a sua palavra”, aquilo que quis manifestar aos homens; e essa palavra está contida nos livros do Antigo e Novo Testamento e, “fora do escrito, nas Tradições”, afirma o Concílio de Trento. Por isso, às vezes os Padres falam da Tradição “escrita” e “não escrita”: e Clemente de Alexandria chama a interpretação tradicional da Escritura de “a Tradição não escrita da Tradição escrita”¹.

Todavia, a Tradição, enquanto se contrapõe à Escritura, é um meio distinto de propagação e conservação da doutrina cristã; e, quanto ao seu objeto, que são as verdades nela contidas, podem elas ser outras além das contidas nos Livros sagrados, ainda que algumas mesmas verdades possam encontrar-se contidas no depósito da Tradição e no da Escritura simultaneamente.

A tradição não é apenas um meio distinto das Escrituras, se ambas forem consideradas como um órgão parcial da transmissão da palavra de Deus de uma geração a outra, mas também, sob certo aspecto, a Tradição leva vantagem sobre a própria Escritura divina.

Porque Jesus Cristo fundou a sua Igreja, não sobre um códice escrito, mas sobre um magistério vivo e pessoal, de caráter perpétuo, cuja forma de sucessão instituiu, para que, sob a assistência carismática do Espírito Santo, fosse o legítimo guardião e intérprete da totalidade da doutrina que o deu em depósito. O magistério eclesiástico é, portanto, o representante jurídico de Jesus Cristo na definição do que seja palavra de Deus, tomando-a no sentido da totalidade da revelação. Magistério que pode manifestar-se em forma de consentimento universal de toda a Igreja ou na mais solene declaração conciliar ou pontifícia. Magistério que é regra imediata de fé para todos os que pertencem a esse organismo religioso, universal e perpétuo, a que chamamos a santa Igreja Católica.

As Escrituras surgiram, por assim dizer, no seio da Tradição; e deverão submeter-se ao seu exame e contraste, para serem aceitos ou rejeitados, todos os livros que aspirarem ser tidos como Escrituras de Deus.

Com isso não se faz injúria a Deus inspirador. O mesmo Espírito Santo que inspira os livros divinos é aquele que, por promessa de Cristo, está com os Apóstolos e os seus sucessores até a consumação dos séculos (Mt. 28, 18-20), para a custódia e interpretação de toda verdade que, em toda a sucessão dos tempos, o “Espírito de verdade” tenha revelado aos homens. E esse Espírito divino não quis manifestar-nos qual seja sua palavra escrita, nem por um catálogo de livros que Ele mesmo tivesse disposto, com garantias suficientes de credibilidade, nem pela missão pessoal dos escritores que utilizou como instrumentos, nem por manifestação pessoal feita pelo próprio Espírito aos leitores dos Livros divinos, mas pelo magistério vivo, por Ele mesmo instituído em ambos os Testamentos, que dá testemunho do fato da inspiração para cada livro particular das Escrituras divinas.

Portanto, a Tradição é, como nota Billot, tomada no sentido de magistério vivo e agente, regra imediata de fé, anterior e superior à Escritura: anterior em ordem cronológica, porque já desde os começos do mundo houve alguma regra, quando ainda não existiam as Escrituras, de acordo com a qual os santos homens de Deus conformavam sua fé: também anterior em ordem de conhecimento, porque a existência da Tradição se prova como regra de fé pelos mesmos argumentos com que se prova a instituição e a constituição da Igreja; mas não é assim com as Escrituras, posteriores à própria instituição e que poderiam não ter existido sem prejuízo da essência da Igreja. Por fim, a Tradição é superior à Escritura em relação à compreensão ou quantidade de verdades, seja porque a própria Escritura apela à Tradição como fonte de alguns dogmas (1 Cor 2,2; 2 Ts 2,14; 2 Tm 1,13; 3 Jo 1,13); seja porque a aparição circunstancial e contingente das Escrituras revela que Deus não se propôs a nelas dar-nos um depósito completo da revelação, como o é a Tradição, instrumento primitivo, central e primário de doutrina fundado por Jesus Cristo².

O Cânon Bíblico

Em virtude dessa suprema autoridade do magistério, que é órgão vivo da Tradição, a Igreja formou uma lista ou “regra”, que é o significado da palavra cânon, em que se indica quais são os livros divinamente inspirados.

O cânon bíblico, tomado formalmente ou enquanto função do magistério da Igreja, é esta designação de todos os livros da Bíblia. Materialmente, é a coleção autêntica dos livros inspirados, reconhecidos como tais pela Igreja, e por ela apontados aos fiéis como livros que contêm a regra de fé e moral.

Livro canônico é o que está incluído no cânon, e corresponde a livro divinamente inspirado, reconhecido como tal pela Igreja, infalível em matéria de fé e moral, e de uso oficial e público na própria Igreja.

A “canonicidade” de um livro é o reconhecimento oficial da sua inspiração pela Igreja ao incluí-lo no cânon.

Não cabe neste breve esboço a descrição da história do cânon. Propusemo-nos apenas a dar o devido destaque a essa elevadíssima função da Igreja, que nos indica, no fato histórico do surgimento de um livro, se ele é ou não escrito por Deus; para daqui derivar, especialmente no que se refere aos nossos Santos Evangelhos, a suma importância de sua canonicidade. É a consagração de um livro na mais elevada autoridade eclesiástica que um livro pode ter.

Os Santos Evangelhos tiveram, desde os tempos primitivos da Igreja, essa máxima autoridade. Escritos os quatro desde meados ao fim do século I, e em meio a uma exuberante proliferação de outros – apócrifos, como atesta São Lucas –, logo alcançam autoridade canônica, pois meio século mais tarde Santo Irineu afirmou, com maior precisão, que há quatro Evangelhos canônicos, que são os atuais, sendo valorosíssimo este testemunho, visto que, oriundo da Ásia Menor, discípulo de São Policarpo de Esmirna e Bispo de Lião, ele representa, na Gália, a voz das Igrejas do Oriente e do Ocidente. “São frívolos, ignorantes e atrevidos, diz o Santo, os que desfiguram a beleza do Evangelho e admitem mais ou menos Evangelhos que os listados…”³.

Clemente de Alexandria, Tertuliano e o famoso cânon Muratori concordam com Santo Irineu. A autoridade canônica dos quatro Evangelhos é tão antiga que o racionalista Strauss, em sua “Vida de Jesus”, teve de dizer: “No final do século II de nossa era, nossos quatro Evangelhos eram reconhecidos entre os ortodoxos como obra dos Apóstolos e dos discípulos dos Apóstolos e, na sua qualidade de documentos autênticos sobre Jesus, tinham sido separados de uma multidão de produções análogas.”

Por gozarem dessa suprema autoridade que dá aos Livros sagrados o reconhecimento oficial e público de sua inspiração, os Santos Evangelhos entram na literatura patrística da mais remota antiguidade como elemento abundante de demonstração dogmática e moral, como tema inesgotável de pregação cristã e como poderoso recurso de apologética contra gentios e hereges. Eles fornecem seus elementos primordiais à arte singela das catacumbas para logo ser o mais abundante motivo de inspiração para a arte rigorosa das basílicas e o mais expansivo e universal das catedrais góticas.

E, sobretudo, os Evangelhos são lidos nas assembleias litúrgicas, nas quais se nutrem a inteligência e o coração do povo cristão com o pão supersubstancial da doutrina divina e dos exemplos que contêm, unindo-se no sacrifício cristão, desde os tempos remotos, as duas comunhões: a da palavra e a do Corpo do Verbo de Deus feito homem.

Os Evangelhos na Liturgia e Pregação

A santa Liturgia e a pregação, tão intimamente unidas nas manifestações oficiais da vida cristã, já desde os próprios tempos apostólicos, são instrumentos que com maior eficácia transmitiram ao povo os tesouros da palavra de Deus, contida na revelação.

Nascida a liturgia católica, ou melhor, enxertada no antigo tronco da Sinagoga, dela recebeu não poucos de seus costumes. O rito mudou essencialmente, porque essencialmente havia mudado o culto, porém foi nas sinagogas judias que se introduziou, gradualmente, a prática da nova religião, que mais tarde deveria suplantar definitivamente os costumes litúrgicos da religião mosaica.

A leitura dos Evangelhos não demorou a introduzir-se nos antigos ofícios cristãos com um caráter oficial, substituindo, pelo menos em parte, as leituras do Antigo Testamento; e à explicação dos Profetas e da Lei pelo escriba sucedeu a palavra pontifical, santa e grave, que desvendava o sentido dogmático e moral dos Santos Evangelhos. Isso é prova incontestável da suma autoridade eclesiástica de que gozaram esses livros divinos nos próprios primórdios da Igreja. Nas “Constituções Apostólicas” ordena-se ao Bispo recém-ordenado que, depois da leitura da Lei, Profetas, Epístolas e Atos, leia os Evangelhos e cumprimente a assembleia com estas palavras: “Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, e a caridade de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.”

Na Peregrinatio Sylviae, documento que data do fim do século IV, por volta do ano 386, Etéria, virgem espanhola, descreve os ofícios divinos tal como eram praticados na Igreja de Jerusalém, e nela se vê claramente o lugar preferencial que a leitura e a pregação do Santo Evangelho ocupavam. Etéria descreve a ordem da vigília no ofício dominical, e diz, entre outras coisas: “E então, estando o Bispo de pé dentro das cancelas (da cripta da Anástasis ou Igreja da Ressurreição), toma o Evangelho, aproxima-se da porta e lê a Ressurreição do Senhor: assim que começa a lê-la, é tal o rugido e clamor dos homens e tanto o pranto, que até o mais endurecido dos homens se comove às lágrimas, (ao pensar) que o Senhor teve de sofrer tantas coisas por nós. “Na missa que seguia depois também se pregava o Evangelho, primeiro pelos presbíteros e depois pelo Bispo, “para que o povo fosse instruído nas Escrituras e no amor de Deus”. Também nos demais dias e festividades se lia e pregava o Evangelho apropriado. Vê-se o que disse a respeito da festa da Apresentação que se celebrava em Jerusalém no 14 de fevereiro: “Nesse dia, diz, se celebra uma festa solene na Anástasis e se celebram os ofícios com a mesma solenidade que na Páscoa. Pregam também todos os presbíteros e depois o Bispo, (falando) sempre daquele trecho do Evangelho que narra como, aos quarenta dias, José e Maria levaram o Senhor ao Templo e Simeão e a profetisa Ana, filha de Fanuel, o viram, e depois do que estes disseram ao ver o Senhor; e da oblação que os pais ofereceram”⁴.

Em Cesareia, Antioquia, África e Roma, leem-se os Santos Evangelhos nos ofícios divinos; São Basílio nos indica as fórmulas e o cerimonial que se observa em sua Igreja para a leitura dos Evangelhos nos ofícios litúrgicos. São João Crisóstomo dá a entender que na sua Igreja de Antioquia se havia organizado uma tabela de leituras evangélicas que era posta à disposição do povo: o santo e eloquentíssimo Bispo convida os seus ouvintes a preparar a passagem que ele explicará em uma próxima reunião. Em Milão, no dia da trasladação das relíquias dos Santos Gervásio e Protásio, Santo Ambrósio faz uma homilia sobre o cego de nascença, cujo Evangelho tinha sido lido nos ofícios litúrgicos. Em Hipona, no tempo de Santo Agostinho, leem-se os Evangelhos. Falando da Igreja de Roma, Tertuliano diz que nela se leem a Lei e os Profetas, com os Evangelhos e Epístolas dos Apóstolos.

A prática é universal nas Igrejas do Oriente e do Ocidente; e é frequentíssimo o fato de que a homilia seja comentário do Evangelho lido nos ofícios litúrgicos. Isso se revela através do fato da homilia sobre a hemorroísa que Orígenes pregou, por mandato do Bispo, após a leitura do trecho correspondente do Evangelho: o célebre exegeta, tomado pela emoção, vê-se obrigado a interrompê-la. Revelam-no também as fórmulas, tão frequentes em São Gregório e Santo Agostinho: “Como nos é relatado no Evangelho lido…”; “Esta leitura do Santo Evangelho não requer exposição, mas para que os ignorantes saibam e não seja enfadonho para os que sabem…” São João Crisóstomo tem 90 homilias sobre São Mateus e 88 sobre São João. De Santo Agostinho nos restam 124 tratados sobre o Evangelho de São João, além de outras homilias sobre outros Evangelhos.

Em todas as partes os Santos Evangelhos não somente se equiparam nas leituras litúrgicas aos outros livros canônicos, como também se tornam o tema principal e mais abundante das instruções dos pastores.

Quanto ao cerimonial, nenhuma leitura o tem tão solene quanto a dos Evangelhos: são honras verdadeiramente divinas as que se prestam ao livro que os contém e à sua leitura. Luzes e perfumes cujo aroma se difunde por toda a basílica, lágrimas e gemidos da assembleia acompanham a leitura do Evangelho em Jerusalém, nos tempos em que Etéria a visitou. Na liturgia alexandrina, todos os presentes se levantam, com exceção do Bispo, enquanto o arquidiácono lê o Evangelho. Os cristãos etíopes rezam o Triságio antes da leitura e, ao terminar, o santo Livro é beijado por todos os presentes.

O cerimonial que ainda hoje observamos na leitura do Evangelho é de profunda humildade por parte de quem tem a honra de lê-lo: a súplica e a bênção do diácono antes da leitura são de uma delicadeza extrema, a fim de expressar sua humilhação antes de tomar em seus lábios a palavra evangélica. Por parte da assembleia, há temor religioso: o sinal da Cruz, a posição em pé, a orientação em direção ao leitor revelam as disposições da alma que ouve a palavra mesma de Jesus. Para o livro e o Evangelho que contém, a mais alta glorificação: coloca-se sobre a mesa do altar, é incensado e acompanhado de luzes, é beijado: o povo recebe seu anúncio com o Gloria tibi, Domine e louva a Cristo ao término da leitura: Laus tibi, Christe.

A história dos “Evangeliários”, dos quais se conservam ainda mais de mil diferentes; a contribuição das pequenas artes à decoração desses livros, alguns destes de alto valor histórico e artístico, e essoutra fartíssima literatura que se formou em torno dos Evangeliários e das perícopes do Missal Romano, desde os “Homiliários” de Carlos Magno até os atuais manuais de pregação adaptada à liturgia do Missal, são outra prova interessantíssima da alta estima com que a Igreja e o povo fiel têm tido esses livros divinos, verdadeira glosa secular de sua divina inspiração e canonicidade⁵.

Os Evangelhos Apócrifos

“Apócrifo”, na linguagem bíblica, equivale a “não canônico”, podendo-se dizer que livros apócrifos são aqueles que, seja pelo título, pelo nome de seu autor, ou do tema que desenvolvem, poderiam ser enumerados entre os livros divinos e talvez tenham sido propostos como tais em algum momento; contudo, a Igreja, seja por não constar o fato de sua inspiração, seja porque contêm algum erro, sempre os rejeitou de seu cânon.

Há livros apócrifos concernentes a ambos Testamentos: conta-se por volta de 115 livros apócrifos do Antigo Testamento e 99 do Novo, entre os quais 47 sobre o Evangelho. A maior parte deles foi perdida.

Eis os principais:

Evangelho segundo os Hebreus. Parece ser uma amplificação aramaica do Evangelho de São Mateus. São Jerônimo o traduziu no ano 390 para o grego e o latim, e atesta que muitos o tinham pelo autêntico Evangelho de São Mateus. Harnack opina que foi escrito no século I, entre os anos 60 e 100.

Evangelho de Pedro. Padece de docetismo e parece ter sido escrito nas Igrejas gregas da Síria em meados do século II, entre os anos 110 e 130, segundo Harnack. Talvez o autor tenha utilizado os quatro Evangelhos canônicos para sua redação.

Evangelho segundo os Egípcios. Escrito em meados do século II. Muitos heresiarcas (Encratitas, Valentinianos, Sabelianos etc.) abusaram dele para confirmar seus erros. Orígenes o enumera entre os Evangelhos heréticos. Por isso o que diz Harnack — de que ele foi aceito por todas as Igrejas etno-cristãs do Egito — é falso.

Evangelho dos doze Apóstolos. Escrito também, aparentemente, em meados do século II, depende — como já notou Santo Epifânio — do Evangelho de São Mateus, e está salpicado de erros da seita ebionita dos Elcasaitas, pelo que se chama também Evangelho dos Ebionitas.

O Protoevangelho de Santiago, que em 24 capítulos narra a história da infância do divino Salvador, desde a natividade da Santíssima Virgem ao massacre dos inocentes por Herodes. É um escrito ortodoxo, embora não faltem nele algumas inconveniências, a exemplo do modo como se prova a inviolada virgindade da Mãe de Deus. Parece ter sido escrito na mesma época, em meados do século II, pois é provável que dele já usaram São Justino e Clemente de Alexandria. Não deve ser confundido com outro Evangelho, escrito muito posteriormente, que depende dele e que também narra os fatos da infância, desde a natividade da Virgem.

Por essa mesma época, até os séculos V e VI, surgiram inúmeros Evangelhos apócrifos. De muitos deles nada se conserva: o Evangelho de Tomé, de Filipe, de Matias, segundo Bartomoleu, da Infância do Salvador, História de José, o Carpinteiro, do Sonho e Trânsito da Santíssima Virgem Maria. No decreto chamado Gelasiano menciona-se, entre outros, o Evangelho de Eva, de Judas Iscariotes, de Barnabé, de Gamaliel etc.

A aparição dos apócrifos, especialmente os Evangelhos, tem uma explicação natural. A atmosfera em que o povo cristão vivia nos dois primeiros séculos estava saturada da viva lembrança dos prodígios da vida de Jesus: a curiosidade natural instigava a imaginação popular a preencher as lacunas que a tradição e os próprios Evangelhos canônicos tinham deixado em certas épocas, especialmente a infância e em alguns episódios dos autênticos feitos prodigiosos ocorridos na vida do Salvador: daqui a invenção de fatos totalmente novos ou a mistificação dos históricos.

A essa curiosidade malsã, que foi a causa da falsificação da história de Jesus nessas narrativas apócrifas, é necessário somar a malícia dos primeiros hereges — especialmente os Gnósticos e Docetas —, que se aproveitaram dessa literatura espúria para misturar seus erros com os fatos mais ou menos fantásticos, cobrindo a mercadoria com o nome dos Apóstolos e outros personagens veneráveis para facilitar sua difusão entre o povo crédulo.

Uma simples comparação dos Evangelhos canônicos com os apócrifos é a melhor demonstração da inferioridade destes: os próprios racionalistas tiveram que reconhecê-la. Contudo, em algumas Igrejas dos primórdios, figuraram no cânon ao lado dos autênticos, embora jamais, em teoria, foram admitidos entre os livros divinamente inspirados. Se um Padre ou uma Igreja particular puderam vacilar nesse ponto, a Igreja universal nunca os admitiu, e eles foram gradualmente eliminados da literatura propriamente eclesiástica, mais ainda da lista dos livros canônicos.

Embora sua leitura possa trazer alguma utilidade — porque poderiam ser receptáculo de tradições legítimas sobre a vida de Jesus não contidas no Tetramorfo, e por vezes expressam a fé do povo cristão naqueles tempos remotos, além de pontuarem detalhes sobre usos e opiniões do povo judeu no início da era cristã, a sua leitura deve ser procedida com a cautela que recomendava São Jerônimo a Leta. “Requer grande prudência buscar o ouro no lamaçal.” Em alguns lugares sua leitura teve que ser absolutamente proibida pelas autoridades.

Na verdade, nada ganha — antes muito se perde — o conceito da pessoa e da história de Jesus que nos dão os Evangelhos canônicos. “Nesses escritos, diz Fillion⁶, o caráter do Menino Deus nada tem da graça e da simplicidade que conquistam todos os corações para o Filho de Maria. Tudo, ou quase tudo, é nele artificial, teatral, às vezes singularmente estranho. Aparece altivo, caprichoso, vingativo. Desobedece a seus pais e responde com insolência a seus mestres. Os habitantes de Nazaré o temiam com razão… São João Evangelista diz que o primeiro de todos os milagres de Jesus foi o de Caná da Galiléia, no início de sua vida pública; os evangelhos apócrifos o fazem multiplicar os milagres já em sua infância. E que milagres! Eles não apenas formam um amontoado de maravilhas inúteis, como também, com frequência, são realizados sem nenhum objetivo moral, ou, o que é pior, com um objetivo egoísta. O leitor imediatamente se sente cansado, mais do que impressionado. É uma exibição interminável, insensata, às vezes chocante, de um poder sobre-humano que não visa senão excitar a admiração. Assim, o Menino Jesus, quando tomado nos braços do velho Simeão, é luminoso e resplandecente como uma coluna de fogo. Em sua viagem ao Egito, as árvores se inclinam à sua passagem e os ídolos caem sozinhos. Em Nazaré, havendo-se-lhe quebrado a ânfora ao ir à fonte, traz a água em seu manto. Faz passarinhos de barro e lhes dá vida. Em tudo isso se percebe uma preocupação dogmática: queria demonstrar que mesmo o tenro menino era Jesus, verdadeiro Filho de Deus. Intenção semelhante faz com que se contem outros prodígios para manifestar a virgindade de Maria e de José.”

Ao proscrever essa literatura, que tão facilmente pôde falsificar a figura de Jesus e oferecer aos homens um modelo — e talvez algumas doutrinas — que houvesse deformado o espírito cristão, a Igreja não só deu uma prova de sua sagacidade crítica, expurgando da tradição popular essas excrescências da história evangélica, como também demonstrou que a assistia esse instinto divino do Espírito Santo, em virtude do qual soube assinalar, em meio às vicissitudes e flutuações dos tempos, homens e doutrinas, os únicos livros que, inspirados pelo mesmo divino Espírito, continham o verdadeiro Evangelho e essa história luminosíssima de Jesus que, se não com toda a intensidade, nos chega, filtrada pelo Tetramorfo, com toda a sua verdade divina.

Sentenças Extraevangélicas de Jesus

É indubitável que nem todas as maravilhas que o Divino Salvador realizou e disse foram registradas nos Evangelhos canônicos. São João o observa expressamente, ao menos no que se refere ao final de seu Evangelho (Jo 20,30; 21,35). Em diversos lugares, os sinóticos insinuam muitas coisas que Jesus disse e fez e que eles omitem (Mt. 4,23; 8,16; 9,35; 12,15 etc.). Muitos desses ditos e sentenças se conservaram e propagaram por viva voz: a maior parte se perdeu no esquecimento, mas outros se conservaram nos livros do Novo Testamento, em alguns códices antiquíssimos da Sagrada Escritura, nos documentos em papiro encontrados nestes últimos tempos, principalmente no Egito, nos escritos dos Padres e escritores antiquíssimos, nos apócrifos do Novo Testamento e nos do Antigo reelaborados por cristãos.

A esses ditos ou sentenças deu-se o nome de agrafa, “não escritos”, ou loguia. As mais preciosas, que carregam a garantia da inspiração divina, são as registradas nos livros do N.T.: a que São Paulo, no seu sermão em Mileto aos presbíteros de Éfeso, nos recorda (At. 20,35); as últimas ordens de Jesus antes de sua ascensão, que São Lucas registra em At. 1, 4-8; as palavras que São Paulo traz em 1 Cor. 11,25: “Fazei isto em memória de mim, todas as vezes que o beberdes.” A respeito das outras agrafa ou loguia, convém agir com cautela antes de aceitá-las como autênticas de Jesus, pois aqui também, como nas narrações dos apócrifos, anda o ouro misturado com a lama.

O ilustre professor da Universidade de Madri, doutor dom Miguel Asín Palacios, colhendo nos escritores árabes, principalmente entre os ascetas, colecionou mais de duzentas loguia, publicadas na Patrologia Orientalis⁷ com sua versão latina e notas adequadas. É indubitável que muitas delas não passam de uma adulteração dos ditos e feitos narrados nos nossos Evangelhos canônicos; outras parecem depender da literatura apócrifa; porém subsistem algumas que podem ser eco das sentenças ou feitos extraevangélicos e que, por isso, nos forneceriam elementos valiosos para a identificação de novas loguia. Não obstante, o professor Torrey, na revista The American Journal of Theology e o P. Power, na Bíblia, negam categoricamente a autenticidade dessas loguia e consequentemente afirmam que o trabalho do doutor Asín Palacios pode ser útil a fim de aumentar o catálogo de loguia. O douto professor os contestou na Revue Biblique, de janeiro de 1927, defendendo a utilidade de suas investigações para esta finalidade.

Tradução: Bruno Simões

Notas de rodapé

¹ Cf. Franzelin, In: De divina Traditione et Scriptura, Thesis I.
² Cf. Billot: De immutabilitate Traditionis, 28.
³ S. Irae.: Cont. Haeres., 3, 11, 7–9. Cf. Vigouroux: Les Livres Saints et la critique rationaliste, t. 5, p. 249 e segs.
⁴ Versão do professor Dr. Galindo, da Universidade de Saragoça, em sua obra “Eteria”, Saragoça (1924), p. 63.
⁵ Cf. Baudot: Les Évangéliaires.
Vie de Jésus, I, 31.
⁷ Asín Palacios: Loguia et agrapha Domini Jesu apud moslemicos scriptores, asceticos praesertim, usitata (1926).